O Jogo de Barbante: O Retrato da Incerteza no Amor Contemporâneo


Eu vi uma cena ontem, e, como sempre, o inevitável veio à minha mente. Estava saindo do trabalho quando avistei um homem e uma mulher se encontrando na rua. Não havia nada de extraordinário, ou ao menos parecia ser o tipo de encontro que poderia passar despercebido, se não fosse pela estranha dinâmica entre eles. O homem, visivelmente carente de algo mais, tentava beijá-la na boca. Ela, por sua vez, desviava, mas não soltava. A mulher se mantinha ali, suspensa na tensão, evitando o beijo, mas ao mesmo tempo não afastando-se. Parecia haver um jogo inusitado de “vai-não-vai”, onde cada um jogava a bola de um lado para o outro sem saber exatamente o que fazer com ela.

Naquele instante, eu pensei: "Isso, meus caros, é o que chamo de barbante". Sim, um jogo onde um puxa, o outro solta, e tudo se mantém preso por um fio invisível, uma linha tênue de incertezas e expectativas não resolvidas. Uma dinâmica onde as pessoas se permitem ficar no limbo, divididas entre o que desejam e o que temem. O homem quer beijar, mas a mulher evita. Ela sente algo, mas ao mesmo tempo se afasta. E, no fundo, ambos sabem que essa dança não levará a lugar algum, mas continuam ali, aguardando, talvez, a decisão do outro.

O que vemos hoje é um ciclo vicioso de indecisão, um jogo de palavras e gestos que mascara uma insegurança profunda. Eu diria que o amor contemporâneo se tornou uma espécie de mercado de expectativas, onde o que conta não é mais o encontro genuíno, mas a promessa de que o outro sempre estará ali, disponível, esperando que a “boa vontade” de alguém finalmente se manifeste.

Essa cena me levou a refletir sobre a sociedade líquida, como Zygmunt Bauman a chama. Estamos vivendo tempos de fluidez, em que tudo parece ser efêmero, instável, e até os sentimentos se diluem na correnteza das redes sociais e das interações digitais. A mulher, ao manter o homem por perto, ao mesmo tempo em que não se compromete, é uma representante do que Bauman descreve: o medo do compromisso em um mundo onde as relações são descartáveis. O homem, por outro lado, é prisioneiro de sua própria necessidade de validação, esperando por uma ação que nunca vem, sempre na expectativa de que a mulher o escolha de forma definitiva. Ambos estão imersos na incerteza, enquanto o tempo passa, sem que se chegue a uma resolução.

Este “jogo de barbante”, no qual um enrola o outro, é uma distorção do que deveríamos entender como um relacionamento maduro. A lógica aqui é clara: ela gosta de outro, mas enquanto esse outro não decide, ela mantém o homem que está à sua volta na esperança de que ele se ajuste às suas expectativas. E assim, a vida segue. O problema é que, ao fazer isso, ela está prendendo tanto a si mesma quanto ao homem em um ciclo que nunca os levará a lugar algum. A espera pela “decisão do outro” se transforma em uma prisão, uma ilusão de controle, onde ninguém se arrisca a dar o passo final.

Estatísticas apontam que mais de 50% dos relacionamentos hoje não perduram, justamente porque as pessoas estão mais focadas em manter opções abertas do que em se comprometer com uma escolha definitiva. O fenômeno das “relações líquidas” é um reflexo da incapacidade de estabelecer laços sólidos em uma sociedade que prioriza a liberdade individual acima do compromisso mútuo. A superficialidade das relações digitais só agrava esse quadro. Estamos constantemente conectados, mas ao mesmo tempo, mais distantes do que nunca, impedidos de enxergar a profundidade dos outros e de nós mesmos.

A solução para esse impasse está, sem dúvida, no resgate do comprometimento genuíno e na coragem de fazer escolhas. É necessário que ambos, homens e mulheres, se libertem da ideia de que a indecisão e a espera pelo outro são soluções viáveis. Em um mundo onde tudo é incerto e fugaz, a verdadeira força está em aceitar os riscos do amor e, mais ainda, em se entregar à vulnerabilidade de um compromisso verdadeiro. o homem precisa de um princípio de ordem, de estabilidade, e isso só será alcançado quando ele se libertar dessa dependência da “boa vontade do outro”.

O verdadeiro drama do ser humano está na sua incapacidade de se decidir. “O amor é uma cadeia”, ele diria, e a fuga constante da decisão é apenas uma forma de adiamento do sofrimento que a escolha verdadeira traria. Mas no final, esse adiamento só gera mais sofrimento.

Por fim, a solução está em descomplicar o amor. Não se trata de escolher entre mil possibilidades, mas de focar em uma única possibilidade com coragem, mesmo sabendo que a dor e o risco são inevitáveis. Porque, no fim das contas, o amor que vale a pena não é aquele que fica à margem da vida, esperando para ser escolhido. Ele é o que exige entrega, renúncia e, acima de tudo, uma escolha.

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