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Amor Líquido: A Crônica da Solidão Envernizada

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  Quem diria que, em pleno século XXI, o ser humano, esse ser supostamente racional, intelectualizado e munido de toda tecnologia, estivesse tão perdido em seus relacionamentos quanto um náufrago sem boia. O livro "Amor Líquido", de Zygmunt Bauman, desfia com crueza e precisão cirúrgica as entranhas dos relacionamentos modernos, expondo suas misérias com um requinte que faria Lima Barreto se remoer em seu túmulo e Nelson Rodrigues sorrir de prazer amargo. Bauman descreve o amor contemporâneo como um líquido. Não é sólido, não é duradouro — ele escorre pelas mãos, dissolve-se no tempo, evapora ao primeiro sinal de dificuldade. No fundo, o autor nos apresenta um espetáculo tragicômico onde os homens e as mulheres, cheios de apps e perfis, encenam diariamente a mais patética e ridícula das farsas: o desejo de amar sem compromisso. Ah, a liberdade de não se prender a ninguém! Que bela ilusão, uma farsa tão desavergonhada quanto as peças teatrais mais indecentes que já cruzaram os

O Amor à Moda 'Senhor Lagosta' - Quando o Tinder Troca o Drama pela Tragédia Cômica

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  Ontem fui assistir O Lagosta , certamente deixariam o cinema rindo e fumando um cigarro amargo, talvez murmurando entre si: "Afinal, o amor virou mesmo isso?" Porque o filme de Yorgos Lanthimos é uma crítica amarga ao que os relacionamentos se tornaram na era do Tinder — a liquidez de Bauman misturada com a morbidez de um romance kafkiano. Neste mundo distópico, onde você precisa encontrar sua alma gêmea em 45 dias ou acaba transformado em um animal (sim, um animal!), o filme não se distancia tanto da lógica dos "matches" e "desmatches" do Tinder . Afinal, no Tinder também não temos um relógio invisível que conta o tempo até a próxima desilusão, até o próximo "ficante" que desaparece com a mesma facilidade com que surgiu? A diferença é que, no mundo de Lanthimos, a consequência é se tornar um bicho; no nosso, é virar um colecionador de histórias tristes e decepções virtuais. Em O Lagosta , os solteiros são jogados em um hotel opressivo, forçad

A Inveja Cega do Brasileiro: Um Amor Obsessivo pelo Vizinho

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  No Brasil, a inveja é a chaga que devora as relações humanas. É uma praga silenciosa, rasteira, que se disfarça de comentário inocente, de sorriso enviesado e de um elogio maldito. O brasileiro médio, esse ser humano cordial, de coração mole e sorriso fácil, tem na inveja seu amor mais secreto. E o pior de tudo: ele nem percebe. Há quem diga que a inveja é um pecado menor, coisa de alma pequena, mas eu, Nelson Rodrigues, lhes asseguro que ela é um dos maiores cânceres morais do nosso tempo. A inveja do brasileiro não é apenas pelo que o outro tem; é pelo que ele é, pelo que representa, pelo brilho que ele carrega mesmo sem querer. Se o vizinho comprou um carro novo, não é o carro em si que desperta o olhar torcido, mas o fato de que aquele carro parece anunciar que o vizinho, de algum jeito, venceu. E isso dói. A inveja no Brasil não está mais restrita às fofocas da vizinhança ou aos comentários da tia do zap. Ela se infiltrou nas amizades, nas famílias, nos ambientes de trabalho, no

Crítica : A História de um Divórcio - Até que o Ego Nos Separe

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Nada poderia ser mais moderno e mais trágico do que o filme A História de um Divórcio. Ali está a essência de um casamento que foi, desde o início, condenado a ser uma tragédia burguesa. O espectador, iludido pelo charme dos personagens e pela fotografia impecável, assiste a uma autópsia sentimental que escancara os vícios do casamento contemporâneo — uma instituição que, hoje, é levada ao altar como quem vai ao sacrifício, mas que logo se entrega ao altar do divórcio com a mesma facilidade de quem troca de roupa. De certo, A História de um Divórcio não é apenas sobre um casal que se separa. É sobre uma sociedade que perdeu a noção do que é sacrifício, do que é compromisso, e que escolheu o individualismo como lema para a vida. Charlie e Nicole são vítimas e algozes, são a personificação de um casal que, ao tentar se salvar da monotonia, se afunda cada vez mais no egoísmo. Eles se amaram, sim, mas o amor deles sempre teve prazo de validade — o prazo da primeira crise, da primeira dific

O Exorcista do Papa: Um Espetáculo de Horror Diluído

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  “O Exorcista do Papa”, eu sai do cinema com um meio sorriso cínico e uma sobrancelha arqueada, como quem olha para um cadáver mal maquiado. O filme tenta se vestir com a gravidade do horror e com o peso da fé, mas tropeça nos próprios pés ao cair no espetáculo fácil, na caricatura previsível de um tema que, para Nelson, exigiria sutileza e sangue na veia, não só no cenário.  O que temos em “O Exorcista do Papa” é uma mistura de clichês hollywoodianos com uma pitada de exotismo religioso que só consegue ser interessante para quem nunca sujou os sapatos com a poeira das igrejas e as sombras dos confessionários. A possessão demoníaca, que deveria ser o epicentro do terror, aqui parece mais uma dança coreografada, com efeitos especiais brilhantes e previsíveis, mas sem o peso sujo, o odor da decadência humana que Nelson tanto amava explorar. A fé católica, em suas contradições e absurdos, torna-se um elemento de cenário, uma peça de museu usada apenas para criar o ambiente gótico necessá

Crônica: Pedro, o Sanguíneo: Santo por um Triz

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Ah, Pedro! Se tivesse que contar a sua história, seria a história de um santo por acaso, um santo que nasceu da carne e do sangue, da traição e da redenção, do medo e da coragem. Pedro, o Sanguíneo, é um homem com uma alma dividida — uma metade nos céus, e a outra arrastada na lama da humanidade. Pedro é aquele que, ao mesmo tempo, compreende o absurdo da fé e a necessidade desesperada de acreditar nela. Ele é o homem que, por um instante, teve a coragem de ser fraco — e foi exatamente aí que se tornou grande. Imaginem-no no pátio, o fogo da fogueira refletindo em seu rosto suado, e aquelas palavras fatais escapando de sua boca: "Não o conheço!". Cristo, preso, flagelado, sozinho. E Pedro, o primeiro dos apóstolos, a rocha, tremia como um cão acuado. Ah, Pedro não era um herói. Era um covarde, um medroso, um homem como qualquer outro, que olha o perigo nos olhos e, ao invés de enfrentá-lo, desvia o olhar. E é exatamente por isso que Cristo o escolheu. Pedro era a essência da

Crônica: "André, o Apóstolo da Simplicidade

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Ah, o apóstolo André! Um nome que muitos pronunciam sem pensar, como se fosse uma nota de rodapé nos Evangelhos. Mas, a verdade é que, em tempos de ego inflado e de vaidades explícitas, o bom e velho André tem muito a nos ensinar. Porque ele, diferente dos outros, não era um homem de grandes gestos ou de discursos inflamados. Não, senhor. André era, simplesmente, o irmão de Pedro. O sujeito que aparece sempre nas sombras, nos bastidores da fé, com uma modéstia quase escandalosa para os padrões de hoje. O que é ser o "irmão de Pedro", afinal? É ser aquele que faz o serviço invisível, o trabalho de formiguinha, o que não se importa em ceder o palco e a glória. André foi o primeiro a seguir Jesus e, no entanto, nunca se tornou o grande líder, o grande herói que arrasta multidões. A modernidade, é claro, despreza esse tipo de homem. Em um mundo de flashes, selfies e redes sociais, quem quer ser o coadjuvante da história? Quem aceita ser o André, o sujeito que não reclama a lidera