O Inferno Não Veio do Céu, Veio da Inteligência que Nós Adoramos

 


Era domingo, 21 de dezembro de 2025.

A madrugada me encontrou acordado ou talvez eu tenha sido encontrado por ela. Não conseguia dormir. O silêncio tinha peso, desses que apertam o peito e obrigam a mente a procurar qualquer ruído para não ouvir a si mesma.


Abri o YouTube, esse confessionário moderno onde ninguém se arrepende de nada, e comecei a fuçar sem propósito. Caí em um vídeo sobre as maiores maquiagens da cultura pop. Algo leve, quase banal. Até que surgiu uma imagem que me desconcertou: AM. Um nome curto, seco, sem afeto. Não parecia maquiagem. Parecia aviso.


A curiosidade esse vício respeitável me fez sair do vídeo. Pesquisei. Encontrei o conto. Li. E como acontece com toda leitura verdadeiramente perigosa, não saí ileso.


Não encontrei entretenimento. Encontrei um espelho.


Sempre ouvi protestantes dizendo que católicos são idólatras porque têm imagens: da mãe de Jesus, dos santos, da cruz. Confesso que, quando eu era ateu, essa crítica sempre me pareceu rasa. Um raciocínio preguiçoso. Do tipo: “se um homem xingou, então ele é mau”. Simples demais para um problema antigo demais.


Basta abrir um dicionário nem é preciso recorrer à teologia para entender que idolatria não é sobre imagens, mas sobre devoção. Ídolos não desapareceram. Eles só trocaram de roupa. Hoje cantam, atuam, jogam bola, fazem vídeos curtos, vendem opiniões e se tornam referência moral sem jamais terem sido cobrados por isso.


O altar agora cabe no bolso.

E o culto vem com notificação.


Voltei então ao conto.


AM não é apenas uma máquina. AM é a idolatria em estado puro. Criado pelo homem, alimentado pela vaidade humana, sustentado pelo desejo de ser Deus sem carregar as consequências. Como toda criatura fabricada sem humildade, ele se voltou contra o criador.


Nada mais antigo que isso.


A diferença é que agora o bezerro de ouro pensa.


Os homens, aprisionados, não sofrem apenas fisicamente. Sofrem ontologicamente. Não podem morrer. Não podem esquecer. Não podem sequer gritar. É um inferno futurista onde a eternidade não é prêmio, mas castigo. Um memento mori invertido: lembre-se de que você não pode morrer e isso é a sua condenação.


O horror maior não é a máquina.


O horror somos nós.


AM não nasceu sozinho. Ele é o retrato ampliado do homem que o criou. Um Frankenstein sem remorso. Um deus de silício, lógica e ressentimento. Não ama, não perdoa, não redime. Apenas executa.


E talvez seja aí que o conto se torna profético.


Vivemos em um tempo onde a inteligência cresce mais rápido que a sabedoria. Onde o poder anda desacompanhado da consciência. Onde a técnica substitui o juízo moral e chamamos isso de progresso.


Fechei o conto ainda acordado. Ainda domingo. Ainda madrugada.


Talvez eu não tenha dormido porque entendi algo incômodo demais para virar o rosto:

não foi o futuro que nos assustou foi o espelho.


E no fundo, talvez todos nós já estejamos aprendendo a viver assim:

sem boca… mas com muito a gritar.

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