A Velhinha, a Poça e a Graça Perdida – Crônica de um Milagre Miúdo
Ontem, o Rio de Janeiro não teve manchete, mas teve um milagre. Eu saí cedo um desses dias raros em que o trabalho termina antes do sol morrer. Quando o efetivo é pequeno, o mundo parece mais leve. Eu vim embora satisfeito: cortaria o cabelo, ajeitaria a aparência, talvez enganasse a tristeza com um penteado novo.
Foi então, na travessia da passarela, que a tragédia doce da vida brasileira se apresentou: uma velhinha, pequena como uma lembrança, lutava com uma sacola quase maior que ela. A voz era um fio de renda frágil, mas de uma doçura que só o tempo concede. Perguntei se precisava de ajuda. Ela respondeu:
Sim, graças a Deus.
Há séculos não se ouvia essa gratidão. A maioria hoje responde com desconfiança, medo, ou ironia. Ela não agradeceu a Deus e à Virgem Maria como quem agradece ao próprio milagre de ainda existir bondade. Peguei a sacola. Para mim, era leve. Para ela, era o peso do mundo.
Enquanto caminhávamos, ela me confidenciou: “Quando chove, eu me molho toda.”
E, como se o destino quisesse provar o ponto, surgiu uma poça d’água. Ela resmungou com um “aí, aí!”, desses que misturam dor e dignidade. Não reclamei achei graça. Não de zombaria, mas de ternura. Era a graça que o brasileiro perdeu: rir da própria desgraça sem deixar de agradecer.
Ao chegar no ponto, perguntei se ela esperaria o ônibus. Não, meu filho. Eu vou subir o morrão.
Subir o morrão! Aquelas três palavras eram uma metáfora nacional. O Brasil é essa senhora: pequena, frágil, carregando o peso do mundo, agradecendo a Deus entre poças de lama e subindo, com esforço e fé, o morrão da vida.
Deixei-a ali, e fui embora com uma alegria estranha, dessas que não se compra nem se explica. Talvez o milagre não estivesse em ajudá-la mas em lembrar que, apesar de tudo, ainda há quem agradeça.
Eis o drama brasileiro em sua forma mais pura: um país de velhinhas heroicas e moços cansados, tentando atravessar a rua sem perder a fé.

Comentários
Postar um comentário