A Garota da Agulha – Entre Doces e Sombras


O século XX pariu suas próprias tragédias, e A Garota da Agulha parece ser a bastardinha de uma delas. Em uma Copenhague desolada pelo pós-guerra, onde os homens desapareceram nos campos de batalha e as mulheres ficaram à mercê de um destino cínico e indiferente, Karoline, a nossa protagonista, descobre da pior maneira possível que o ventre feminino é mais maldito do que bendito.  

Grávida e descartada como um cigarro apagado pelo amante patrão – e sem marido para ser viúva – Karoline faz o que tantas mulheres fizeram ao longo dos séculos: procura refúgio em mãos que parecem bondosas, mas escondem um segredo sujo. E aqui entra Dagmar, uma matrona de sorriso açucarado, dona de uma loja de doces que também distribui crianças como se fossem bombons. Uma santa de fachada, uma cafetina de bebês, uma providência perversa.  

O filme é uma tragédia anunciada, mas sua beleza está no modo como transforma o desespero em poesia. Vic Carmen Sonne entrega uma Karoline que não chora pelo que perdeu, mas pelo que ainda terá que perder. Trine Dyrholm encarna Dagmar com a hipocrisia impecável dos que creem estar salvando o mundo enquanto o destroem.  

E há a agulha. Ah, a agulha. Símbolo de sutura e perfuração, de costura e punição. Não é um mero título, mas um presságio. No fim, toda mulher paga o preço de existir – algumas com suor, outras com sangue.  

O que isso diz sobre nós?

O século XXI, se olhasse para este filme com alguma honestidade, enxergaria seu próprio reflexo. Porque a hipocrisia, meus amigos, não envelhece. Apenas troca de roupa. Hoje, Dagmar usaria jaleco branco e falaria de autonomia. Karoline estaria em um aplicativo, deslizando desesperadamente para a esquerda e para a direita, acreditando que encontrar um amor é o mesmo que encontrar uma saída.  

E as crianças? Ah, as crianças... Que importam as crianças?

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