A Garota da Agulha – O Horror Não Está Onde Se Espera

Copenhague, pós-Primeira Guerra Mundial. Um mundo sem homens e sem esperança. Mulheres largadas à própria sorte, vendendo o que têm – e, quando nada mais lhes resta, vendendo os filhos. Este é o cenário de A Garota da Agulha, um filme que parece ter sido escavado do próprio cinema expressionista alemão, com sua fotografia esfumaçada, sombras duras e uma Europa devastada que fede a miséria e a desamparo.  

Karoline (Vic Carmen Sonne) é uma mulher como tantas outras: operária, grávida de um patrão canalha que a descarta como um cigarro fumado pela metade. O marido? Desaparecido em combate. A sobrevivência? Um pesadelo diário. Então surge Dagmar (Trine Dyrholm), uma mulher madura, dona de uma loja de doces – e de uma agência de adoção clandestina. Uma mulher que representa um alívio, um consolo... até que Karoline percebe o preço desse conforto.  

O diretor Magnus von Horn não nos dá respiros. A câmera busca o rosto de Karoline nas multidões, entre sombras e cinzas, como se perguntasse: existe um caminho para ela? Existe uma saída para qualquer mulher desse mundo? A resposta, já sabemos, mas Horn nos arrasta para o fundo do poço antes de dizê-la em voz alta.  

A Miséria Tem Estética – E Não É Beleza

A comparação entre os dois últimos filmes de von Horn – Sweat e A Garota da Agulha – é um tapa na cara. O primeiro, estourado de cores, reflete o mundo digital e efêmero das redes sociais. O segundo, afogado em trevas, retorna ao século XX como um pesadelo sem fim. A estética do expressionismo alemão não é mero capricho visual: é um retrato da própria psique de uma Europa esmagada pela guerra e pela fome.  

Mais do que um drama sobre abandono e sobrevivência, A Garota da Agulha propõe uma questão desconfortável: o que choca mais? Ver mulheres apodrecendo de fome ou ver uma mulher cometendo atos brutais para continuar viva? Karoline luta para não ser engolida pelo destino, mas tudo que encontra são portas que se fecham. Casas precárias, trabalhos miseráveis, e outras tantas mulheres que precisam abrir mão da maternidade porque, em um mundo assim, um filho não é uma bênção – é uma sentença.  

O Horror Está Na Sociedade, Não Em Dagmar

O grande trunfo do filme é inverter nossa percepção de horror. Dagmar, com seu sorriso maternal e seu disfarce açucarado, faz o que faz não por prazer, mas porque há um mercado, uma necessidade brutal que ninguém quer enxergar. A sociedade prefere se indignar com as mãos sujas de Dagmar do que com o sistema que a criou. O verdadeiro vilão não está na loja de doces – está na fome, na indiferença, no desprezo por quem não nasceu privilegiado.  

E Karoline? Não há salvação para ela. O cinema costuma nos enganar com falsas esperanças – um casamento conveniente, um final feliz improvável –, mas von Horn nos poupa desse insulto. Sua protagonista não será resgatada por um príncipe, nem encontrará um futuro melhor. O único alívio possível talvez esteja no encontro com Erena, uma menina que carrega, nos olhos, o mesmo desespero silencioso.  

A Ilusão Do Otimismo 

Sweat refletia o tempo presente, mas A Garota da Agulh reflete algo atemporal: o cinismo humano. Ainda hoje nos vendem sonhos impossíveis para nos distrair da miséria real. A ideia de que cada bebê "doado" encontrará uma vida de amor e conforto é tão ingênua quanto crer que o mundo algum dia será justo.  

Magnus von Horn nos faz engolir a realidade sem açúcar. Ele entende que o horror não precisa de monstros, porque os verdadeiros terrores são humanos – e cotidianos. O horror está na fila de mulheres desesperadas, na fome, na culpa, na necessidade de acreditar que, apesar de tudo, ainda existe um motivo para seguir em frente.  

Mas será que existe mesmo?

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