“Que Horas Ela Volta?" – O Brasil da empregada que virou gente
Se o Brasil fosse um romance, ele não seria de Machado, nem de Graciliano. Seria um folhetim barato, desses que se vendem na rodoviária. Em Que Horas Ela Volta? (2015), de Anna Muylaert, temos a história de Val (Regina Casé), uma empregada doméstica que, depois de anos servindo uma família de classe média alta, reencontra a filha, Jéssica (Camila Márdila), e vê seu mundo desmoronar. O filme não é só uma crítica social – é um raio-X da hipocrisia brasileira, onde a casa-grande nunca deixou de olhar a senzala com desconfiança.
Val é o retrato da velha servidão disfarçada de lealdade. Dorme no quartinho dos fundos, toma café na cozinha, chama os patrões de "seu" e "dona". Mas não reclama. Pelo contrário, tem gratidão. Porque no Brasil, se há uma virtude mais valorizada do que a competência, é a submissão. A patroa, interpretada com frieza cirúrgica por Karine Teles, adora Val. Desde que Val saiba o seu lugar.
Mas eis que surge Jéssica, a filha rebelde que não aceita as regras desse teatro social. Chega de mala e cuia, senta no sofá da sala, abre a geladeira, toma banho na piscina dos patrões. E isso, para o Brasil de Val, é um escândalo. A filha da empregada não deveria se comportar como igual. Deveria saber que, apesar do discurso meritocrático, a mobilidade social do país é uma piada de mau gosto.
O mais aterrador em Que Horas Ela Volta? não é o conflito de classes, mas o conformismo de quem nunca questionou a própria humilhação. Segundo o IBGE, mais de 70% das empregadas domésticas no Brasil são mulheres negras e apenas 25% têm carteira assinada. A história de Val é a história de milhões de brasileiras que, por gerações, serviram à elite sem jamais serem vistas como parte dela.
O Brasil não tem mais empregados – tem escravos disfarçados de gente honrada. O patrão moderno não usa chicote, mas paga um salário mínimo e oferece um quartinho nos fundos. A escravidão, afinal, nunca acabou. Só trocou de nome.
O mais engraçado – e trágico – é que Que Horas Ela Volta?não precisa inventar nada. A realidade já é absurda o suficiente. E o Brasil continua a ser o país onde a patroa oferece restos de bolo à empregada como se fosse um favor divino. Um país que, apesar de toda a conversa sobre progresso, ainda se assusta quando a filha da empregada resolve sentar no sofá.
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