Crítica: A Pureza e o Perverso: Uma Aventura de Amores e Outras Loucuras

 

Imagine-se, caro leitor, entrando no cinema com a expectativa de assistir a uma comédia romântica leve, despretensiosa, dessas que a gente vê com um copo de refrigerante numa mão e a outra já pronta para o pote de pipoca. Pois bem, "Totalmente Selvagem" começa assim, com ares de leveza e doçura, como um beijo na testa. Temos Charles Driggs, um homem respeitável, com o terno bem passado, a gravata justa e a alma pendurada em uma parede cinza. E temos Lulu, com seus olhos faiscantes, o cabelo indomável, e o jeitão de quem diria "sim" a tudo o que a vida oferece.

Ora, mas o cinema de Jonathan Demme não é um romance qualquer, não senhor! O que ele nos dá é um espelho, e o que se reflete ali não é nada menos do que a alma aflita do ser humano moderno, essa criatura que vive se agarrando a desejos e medos e, no fundo, não sabe o que fazer com nenhum deles. Como diria nosso estimado Machado de Assis, “o coração humano é a própria comédia, com lágrimas e risos misturados”. E cá estamos, diante dessa “comédia selvagem” onde o desejo e o medo se encontram, se despenteiam, e finalmente saem aos gritos.


Lulu e Charles são arquétipos do nosso tempo, exemplares perfeitos dessa sociedade líquida de Bauman, onde tudo escorre pelas mãos, e o compromisso é como o rastro da água na areia: mal desenhado e já desaparece. Charles, o homem da rotina e da segurança, está preso em seu mundinho de convenções. E Lulu é a própria liberdade, mas não a liberdade serena e clara; ela é uma liberdade inquieta, insatisfeita, sem compromisso, uma liberdade que exibe cicatrizes. Quando esses dois se cruzam, é a dança da dualidade: o que um deseja é o que o outro teme. Ele quer ser livre como Lulu, mas não sabe como; ela deseja segurança como a de Charles, mas isso é quase uma piada amarga para ela.

Aí entra o bom Ray, o ex-marido bandido, o elemento do caos. Com ele, a comédia romântica vira quase um drama grego, onde não há amor sem tragédia, nem liberdade sem consequência. E eu, neste momento, quase imagino uma igreja ali no meio da trama. Ah, como resolveria a Santa Madre Igreja esse dilema moderno? Talvez nos propusesse a seguinte reflexão: “Meu filho, para que você quer ser livre, se nem sabe o que fazer com a liberdade?”

E aqui está o problema dessa nossa modernidade de aparência reluzente e alma vazia: queremos escapar de tudo e de todos, mas, ao fim, somos escravos de nós mesmos, de nossas paixões insaciáveis. O que Lulu e Charles realmente querem, talvez, seja fugir desse vazio, um vazio que nem a liberdade deles preenche. Como diria Nelson Rodrigues, “a vida como ela é” exige compromisso, ainda que traga as dores do cotidiano. Talvez seja preciso, sim, amar com um pouco de paciência, aceitar as rugas da rotina, e, no final das contas, reconhecer que não somos tão "selvagens" assim.

No altar dessa igreja imaginária, eu vejo Charles, com seu terno bem passado, finalmente pronto para um novo tipo de compromisso. Vejo Lulu, ainda rebelde, mas agora, quem sabe, com uma centelha de compreensão sobre a quietude do amor sincero. No fim, o que eles (e nós) precisamos aprender é que o amor, esse sim, exige uma entrega completa, quase monástica. Amar é aceitar o tédio e a serenidade, é encarar o riso e a lágrima como companheiros inseparáveis.

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