Amor Líquido: A Crônica da Solidão Envernizada
Quem diria que, em pleno século XXI, o ser humano, esse ser supostamente racional, intelectualizado e munido de toda tecnologia, estivesse tão perdido em seus relacionamentos quanto um náufrago sem boia. O livro "Amor Líquido", de Zygmunt Bauman, desfia com crueza e precisão cirúrgica as entranhas dos relacionamentos modernos, expondo suas misérias com um requinte que faria Lima Barreto se remoer em seu túmulo e Nelson Rodrigues sorrir de prazer amargo.
Bauman descreve o amor contemporâneo como um líquido. Não é sólido, não é duradouro — ele escorre pelas mãos, dissolve-se no tempo, evapora ao primeiro sinal de dificuldade. No fundo, o autor nos apresenta um espetáculo tragicômico onde os homens e as mulheres, cheios de apps e perfis, encenam diariamente a mais patética e ridícula das farsas: o desejo de amar sem compromisso. Ah, a liberdade de não se prender a ninguém! Que bela ilusão, uma farsa tão desavergonhada quanto as peças teatrais mais indecentes que já cruzaram os palcos.
Hoje, o namoro não tem prazo de validade — ele já nasce vencido. Bauman revela que as pessoas buscam uma conexão, mas sem querer se conectar de fato, desejando um amor que as satisfaça, mas sem o peso do compromisso que antigamente se selava num altar. O namoro moderno, no entanto, é como aquele pavê da ceia de Natal: só se olha, mas ninguém realmente quer comer. E por que comer, se amanhã a internet te oferece um banquete novo e mais tentador? Aqui, Nelson Rodrigues daria uma risadinha irônica, balançando a cabeça como quem já previa tudo isso.
Em "Amor Líquido", a tal “fragilidade dos laços humanos” que Bauman descreve é quase uma comédia de erros: a juventude, mais conectada do que nunca, está também mais solitária, mais ansiosa, mais carente. Cada conversa virtual é uma tentativa desesperada de contato, um pedido de socorro disfarçado de emoji sorridente. O homem moderno — esse eterno Don Juan digital — não tem paciência para a entrega, quer o gozo imediato sem a responsabilidade que vem depois, como se o prazer pudesse ser um fast-food de sentimentos: rápido, prático e descartável.
A ironia é que, no fundo, todos querem se salvar do mesmo vazio que criam. Aqueles que gritam aos quatro ventos sobre a liberdade do coração são os mesmos que dormem abraçados ao celular, esperando uma notificação que nunca vem. Essa é a piada cruel que Bauman nos conta, sem precisar rir. E não nos enganemos: o amor líquido não é moderno, não é libertador, não é revolucionário. É apenas a velha covardia humana, vestida com as roupas do século XXI e perfumada com a tecnologia dos likes.
O livro é um convite a reconhecer que a superficialidade dos relacionamentos contemporâneos, tão bem descrita por Bauman, não é progresso — é regressão. E, no fundo, no fundo, não há nada mais conservador do que essa busca por uma segurança que não se pode encontrar, numa transcendência que não se deseja de verdade. Bauman nos mostra que o moderno é o antigo: somos prisioneiros de nossos próprios medos, desnudados em selfies, tentando parecer felizes enquanto o amor — aquele de verdade, que suja, que cansa, que pesa — é enterrado sob camadas de ironia e desinteresse.
O "Amor Líquido" a prova incontestável de que o amor nunca foi tão irreal e a solidão, tão real. Pois no fim, o brasileiro médio, com seu jeitinho de disfarçar tristezas com piadas, só faz rir para não chorar, enquanto seus relacionamentos desmoronam como castelos de areia diante da mais fraca maré.
E assim seguimos, rindo do vazio, enquanto a correnteza da vida arrasta os restos dos amores que, um dia, até poderiam ter sido.
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