Berserk: A Tragédia de um Mundo Sem Deus

Há algo de profundamente visceral, um tom de tragédia grega mesclada com o delírio de um romance naturalista, em Berserk, essa obra que se ergue como uma catedral gótica do desespero. Kentaro Miura, o autor, talha cada página como se fosse um entalhador medieval — meticuloso, feroz, e devoto apenas à carne crua da verdade. Se eu fosse definir Berserk em uma palavra, esta palavra seria "pecado". Porque aqui, como na vida, o pecado é o que rege cada ação, cada escolha, cada gesto.

Guts, o protagonista, é o nosso anti-herói por excelência. Um Sísifo medieval, empurrando a rocha do seu ódio e da sua vingança por um inferno de horrores impensáveis. A cada batalha, a cada inimigo desfigurado pela maldade, há um lampejo da nossa própria bestialidade. Guts não é um herói — ele é a anti-heroicidade encarnada, alguém que renunciou à esperança para abraçar o inferno particular de sua existência. Não há luz nos seus olhos, mas o brilho do aço, da espada imensa que ele carrega como um fardo messiânico. 

Como todo bom personagem rodrigueano, Guts é marcado pelo abandono e pela tragédia. Órfão, nascido da morte, ele não encontra consolo nos braços do amor ou na paz da espiritualidade. Não, sua redenção está no próprio ato de lutar, de resistir contra um mundo que o traiu desde o berço. Em Berserk, a esperança é um artifício dos fracos. Guts é um homem que apenas vive para desafiar a morte com a raiva de quem já esteve nela e voltou para amaldiçoar a criação.

Mas seria um erro pensar que Berserk é apenas sobre a selvageria e a brutalidade. Aqui, o mal não é apenas uma força externa, mas uma parte intrínseca do ser humano. Griffith, o grande antagonista, é um anjo caído, uma promessa de grandeza corrompida pela própria sede de poder. Ele é a encarnação da nossa vaidade, da nossa sede de grandeza que termina sempre em sangue e traição. É o filho pródigo que não volta, que se entrega à luxúria dos seus próprios sonhos e queima tudo ao seu redor. Griffith é o grande personagem rodrigueano — a beleza corrompida, o amor que se transforma em veneno.

Miura, com sua arte detalhada e obsessiva, mergulha nas profundezas da alma humana, mostrando-nos um mundo que é uma eterna procissão de horrores. Mas há um fascínio nesse horror, uma beleza sombria, um prazer culpado em ver o quanto o ser humano é capaz de descer ao abismo. É como se o leitor se tornasse cúmplice dos atos mais hediondos, como se a obra o convidasse a contemplar o pecado de uma posição segura, mas nunca inocente.

O que Berserk revela, e aqui falo como alguém que se encantaria por seu teatro, é que a civilização é apenas uma fina camada de verniz sobre a barbárie. Deixe uma espada cair, deixe uma traição ser consumada, e tudo retorna ao seu estado natural: o caos. Não há nada mais rodrigueano do que isso. Na obra de Miura, o amor é uma ilusão cruel, a redenção é uma mentira piedosa, e Deus, se existe, abandonou seu mundo há muito tempo. A Igreja, com suas imagens de apóstolos e mártires, não é capaz de enfrentar os monstros que habitam a escuridão das florestas e da alma humana. 

Berserk é, assim, uma crítica feroz da nossa própria hipocrisia. Em cada vilarejo queimado, em cada cadáver abandonado, há um espelho que nos reflete de forma distorcida, mas verdadeira. Miura nos mostra que a maldade é banal, mas o que é verdadeiramente espantoso é a capacidade do homem de seguir lutando, mesmo quando não há razão ou esperança. 

O verdadeiro trágico de Berserk é que, ao final, não há redenção possível. A jornada de Guts, como a de um Dom Quixote trágico, é sem fim. Ele luta não por uma vitória, mas para desafiar um destino que já o condenou. E nós, leitores, somos obrigados a assistir — não como juízes, mas como cúmplices de sua dor e de sua desesperança. Porque, no fim das contas, o mundo de *Berserk* não é tão diferente do nosso. É apenas uma versão mais honesta, mais nua, mais cruel. 

É um teatro da vida, em preto e branco, onde o sangue é a única cor que brilha.

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